terça-feira, dezembro 16, 2003

Claire de Lune


Enquanto a chuva desaba torrencialmente lá fora, fico a repassar mentalmente todos os projetos estabelecidos e não cumpridos. Todas as amarguras vividas, os amores passados e oportunidades perdidas. Um estranho sorriso brota de meus lábios. Não há explicação para o mesmo, haja visto minha doença terminal e o tempo chuvoso que agrava ainda mais as dores em minhas costas.
A televisão, minha única distração, não me traz nada além de futilidades e me oferece um estilo de vida incompatível com a minha idade e mais ainda, minha mentalidade. O violão está abandonado por que meus dedos não têm força sequer para um dó maior. A mim só resta contentar-me com a dificultosa leitura e com a visita esporádica de meu filho. Aliás, acredito que hei de vê-lo hoje.
A chuva aumenta e ri de mim ao bater de encontro à minha janela. "Egoísta"; ela diz. Zomba da disparidade entre meu combalido corpo e minha lúcida mente.
Volto a relembrar meu passado e procuro visualizar onde errei. Percebo que, ao contrário do que dizem, o abandono sofrido não foi nada mais do que consequência natural de meu comportamento. Restou-me apenas meu próprio ego e a minha inimiga, que teima em rir de mim a não poder.
Retorno à televisão. Uma vagabunda qualquer rebola para conseguir alguns aplausos. Um jovem, com trajes estranhos divulga seu romance "escrito com os culhões". Uma criança me diz para não esquecer de comprar sabonete. Um soldado morre dizendo que nunca esqueceria o seu amado. Não aguento a tortura e desligo o aparelho, estilhaçando em seguida o controle remoto à parede. Tento me levantar, caio e sinto o chão frio esfarelar alguns de meus ossos. Tento chamar pelo enfermeiro, mas não alcanço o botão. Pressinto o fim chegando e a tal paz que o Pastor me disse não vem. em meu último fragmento de consciência diviso a fragilidade da vida e compreendo que é melhor mesmo encerrar minha passagem por aqui mesmo...