quarta-feira, fevereiro 25, 2004

As quatro estações - Outono


Sol, Fá, Sib, Fá, Ré, Dó, Fá Ré, Sib, Sol. Dez notas, quatro compassos. O maior momento da minha vida. O solo inicial da primeira Promenade dos "Quadros" de Mussorgsky. Logo após ascender ao posto de primeiro trompetista, não consigo controlar a ansiedade que toma conta de mim. Nada é tão importante quanto essa apresentação! A tradicional meia hora diária foi substituída por mais de três horas de estudo por dia; pois além de tudo havia o agravante de ser o retorno de nosso antigo Maestro. O mesmo que me acolhera como trompetista reserva, quando eu nem conseguia sequer distinguir um compasso simples de um composto.
Lembro-me com carinho das lições transmitidas tão sabiamente por aquele homem de alma amável e paciência inacreditável. Todos os meus erros eram sucedidos por olhares fortes, num misto de reprovação e incentivo, sendo esse último grande o suficiente para me fazer tentar com mais afinco e me dedicar com mais paixão.
Da mesma forma me recordo da saída de meu mestre, de seu envolvimento com aquela mulher vil, que tantas vezes causara a discérdia na orquestra. Meu coração ainda se lembra do olhar de tristeza de meu mentor em seu concerto de despedida.
Mas agora é diferente. Ele voltou, e melhor ainda, colocou-me em um posto em que eu possa der-lhe orgulho. Nada há de atrapalhar esse dia. O teatro lotado, as pessoas em polvorosa, tudo afinado, perfeito. E Ele surge, ovacionado! Levanta seus braços, me fazendo sentir a vibração, me pisca um olho maroto e dá a entrada!
Sol, Fá, Sib, Fá, Ré, Dó, Fá Ré, Sib, Sol. Perfeito! Mal consigo conter a emoção ao ver meu mestre chorar, mas me recomponho e sigo em frente. A Promenade termina; entra "O Gnomo", sem maiores problemas. Segunda Promenade, melhor ainda que a primeira; no "Velho Castelo" tudo corre bem; o solo de saxofone segue maravilhoso quando um barulho estranho interrompe tudo. Caos instaurado e o Maestro ao chão. Uma apresentação interrompida, um homem morto e eu, um reles trompetista, choro sobre seu corpo; com a promessa de nunca mais entoar essas dez notas novamente...

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

As quatro estações - Inverno


Sobre esse palco, juntamente com a melhor Sinfônica de todos os tempos, apresentam-se os os consagrados clássicos da música erudita. O maestro, sentia um prazer incomensurável ao perceber em seus "comandados" a algria de uma suíte bem feita, de um movimento bem tocado, ou mesmo de um solo perfeito.
A rivalidade, tão comum, inexistia. Apenas a música movia os corações e nada podia tornar isso diferente. Até a chegada da nova spalla.
Ao divisar seu rosto pela primeira vez, ele foi acometido de um estranho sentimento; que mais tarde descobriu ser amor. Um amor doentio e sem medidas que o fez esquecer o que importava. Que matou em seu coração as sensações antes tão importantes. Nada mais importava além da companhia da amada. Embriagado de amor, deixou a Orquestra e foi dedicar-me somente a ela.
Levava uma vida tranquila, ao menos no começo, mas com o tempo percebeu mudanças bruscas de atitude, ornamentadas por violentos acessos de ciúme; o ápice de seu desespero se deu ao descobrir que era traído. Não haviam forças para continuar vivendo, nada mais podia salvá-lo. Nada além da música.
Seu retorno foi aclamado por todos, público e crítica. Esperavam sua primeira apresentação com uma ansiedade sobrenatural. Tudo estava acertado; e o grande dia chegou.
Modest Mussorgsky - Quadros para uma exposição. Sua peça favorita desde os tempos em que mal conhecia regência.Todos os movimentos tocados à perfeição; o solo inicial da primeira Promenade levou-o às lágrimas. Tudo corria como devia ser; até que se ouviu um barulho, seco; e um corpo tombou no palco. O socorro chegou tarde demais, podendo apenas confirmar o óbvio. O Maestro foi sepultado com toda a pompa devida, ao som da ària para a corda Sol de Bach:
- Nossa pai, me trazer pra conhecer o Teatro antes da demolição tudo bem, mas por que me contar uma história dessas?
- Porque dizem que se você fechar o os olhos e se concentrar, você vai ouvir algo. Tente!
- Estou ouvindo algo pai! Parece alguém chorando! É o Maestro?
- Ninguém sabe meu garoto... Ninguém sabe!

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Terra de ninguém


E torno a andar pela tortuosa e estreita estrada das palavras. Ao meu lado, um abismo sem fundo; no qual posso cair ao menor passo em falso. Sinceramente, deixei de temer as palavras e suas consequências. Hoje trato-as como companheiras de um processo simbiótico; dou a elas a liberdade que tanto anseiam e em troca tenho minhas emoções estabilizadas e postas em um estado de segura anestesia.
MIsteriosamente reencontro prazer em coisas pequeninas e pueris, como a boa e velha chuva. Sorrisos brotam de meu rosto como mato cresce nas plantações. É inexplicável a alegria que sinto em meu corpo, assim como infundado é meu temor das pessoas. Elas não mais podem me ferir ou sequer tomar o que é meu. Não vivo mais; não mais sou visto; e nunca imaginei que isso tdo pudesse ser tão bom...