quinta-feira, março 31, 2005

Danse Macabre


Então é essa a sensação de estar vivo? Assim se sentem os que cruzam o caminho e encontram paz? Como é estranha a ausência da fome, sentir meu corpo novamente inteiro, a dor finalmente cessa. Ando por entre as pessoas reparando em cada expressão, em cada olhar, perscrutando as mentes; que embora inalcalçaveis me despertam curiosidade. Sinto necessidade de saber como se sentem estes que povoam o mundo. Quero, agora que a maldição se foi, descobrir um propósito e esquecer meu passado.
Sigo a esmo durante todo um dia, maravilhado com os sorrisos infantis e sua espontaneidade tão diferente dos adultos, que me olham com desconfiança e alguns deixam transparecer sentimentos que me lembram meus "velhos tempos".
Não encontrando parada, retorno ao meu antigo lar para repousar em um canto qualquer. O fogo fátuo torna a noite de lua cheia ainda mais linda. As flores, que inalmente me transmitem seu odor me fazem esquecer por um momento que ese é um lugar de morte e não vida. Me perco em pensamentos até ser vencido pelo sono, encostado na lápide onde se encontra inscrito meu nome.
Desperto pela luz do Sol torno a vagar pela cidade, estudando os tipos mais estranhos. Um homem que inventa uma paralisia para se aproveitar da boa vontade alheia, um saxofinista desafinado que ganha seu pão honestamente; um homem com um livro na mão, em pleno anoitecer, dizendo que todos devem se arrepender me chama atenção...
- Devo me arrepender de que?
- De tudo o que você fez de errado! Porque o fim está próximo!
- Mas como vou saber o que é errado?
- Eu vou te dizer o que é errado! A luxúria é errada! As pessoas só pensam em prazer, prazer, prazer! Isso é coisa do demônio! E mais ainda a gula! Todos só querem saber de se empanturrar ao invés de fazer um bom e saudavel jejum. Até a música é coisa que nos condena!!! Você tem de se arrepender e nunca mais ouvir essas coisas!
- Peraí! Música? O senhor por um acaso conhece Mozart? Tem certeza que aquilo é mesmo a perdição??
- MOZART ERA MAÇOM!!! Ele deve estar ardendo hoje por conta do que fez!!
- Na verdade ninguém conseguiu provar isso... Mas o senhor me tocou com seu discurso! Eu vou me arrepender e gostaria que o senhor viesse ao meu lar para que pudesse discursar para alguns amigos meus que também precisam conhecer a verdade!
- Mas é claro que eu irei! É meu dever levar paz aos que precisam. Basta dizer o caminho.
Sigo em silêncio guiando aquela figura odiosa até a entrada de meu lar. Seu susto inicial é seguido de uma pancada na cabeça bem desferida por mim. Tomo as providências e o espero acordar:
- Ó companheiros de dor e sofrimento eu os chamo! Sei que minha condição hoje lhes desperta o mais profundo ódio, mas foi para apaziguar essa situação que trago hoje aqui alguém que lhes servirá de alimento e companhia, pois partilha o mesmo espírito que os trouxe à sua forma atual! Despertem de seu sono para saciar uma vez mais a fome insuportável!!
- O que você está fazendo!! Se você não me tirar daqui você vai morrer! Eu serei salvo por Aquele que é Acima de Mim!
Então a terra estremece e figuras pútridas avançam sobre o pobre profeta amarrado.Pedaços de carne a pender dos ossos, trapos desfiados a cobrir a inominável visão, dentes de ouro a brilhar sob o luar em contraste com a podridão dominante são a última visão do pobre homem. Um sorriso brota e um grito gutural surge do fundo de minh´alma. Finalmente entendi porque fui liberto e o qual o sentido de minha vida. Meus irmãos me olham esboçando sorrisos enquanto o profeta, ainda com sangue a escorrer sobre os restos de sua roupa me diz:
- Tenho foooooooooome! Muita fome!!!

terça-feira, março 08, 2005

Bad place to visit

É estranho retornar a essa casa, esse lugar tão estranho e de formas não convencionais. Nenhuma medida dessa construção é regular, não vejo um ângulo euclidiano e ao que parece, as somas angulares dos triângulos formam sempre pouco mais ou pouco menos que 180 graus. Mas era necessário retornar; era imperativo enfrentar os velhos fantasmas e descobrir o que vem me assombrando e me tirando o sono desde a última vez que visitei esse lugar.
Percorro os corredores que aparentam me engolir e sigo até o quarto. Lufadas de vento de aroma pútrido contaminam meus pulmões e o cheiro de mofo que exala dos lençóis rasgados me desencoraja e a idéia da desistência toma minha mente de assalto. Felizmente reúno forças e em um supiro defino minha decisão:
- É necessário!
Deito-me sobre os lençóis rasgados e a casa manifesta seu descontentamendo com um rangido de madeira velha. A própria cama sa mexe sob mim como se me quisesse expulsar. Retiro um par de comprimidos do bolso - calmantes - os engulo em seco e pouso minha cabeça sobre o braço esperando o sonho:
- Daniel! Daniel! Acorde e me encare...
Mesmo com a dose maciça de calmantes ingerida despertei rapidamente e vi quem me chamava. Ela, Helena, a mulher que eu abandonei à propria sorte quando estive nesse mau lugar pela primeira vez. A única que eu amei de verdade e aquela que deu sua vida pela minha:
- Helena! Não peço que acredite em mim, muito menos que me perdoe. Vim aqui porque precisava lhe encarar uma vez mais, olhar dentro de teus olhos e te dizer tantas coisas que não o foram quando estávamos juntos. Há tanto que te dizer, mas não sei sequer por onde começar. Só consigo lhe dizer que te amei mais do que tudo.
- E tu, meu Daniel, saiba que és amado por mim ainda aqui em meu lar eterno, não há mágoa pelo que aconteceu e te peço apenas que permaeças aqui comigo para que sejamos um só por toda a eternidade. Essa casa nos proverá sustento e felicidade; veja que até a minha beleza permanece.
Realmente Helena se mostrava tão bela quanto no dia em que nos encontramos pela primeira vez. Sua roupa era alva como um nuvem e seu cabelo esvoaçava com uma vida impressionante. Mas eu ali estava por um motivo e havia de cumprir minha promessa:
- Infelizmente amada minha, é impossível que eu me junte a ti nessa prisão eterna. Vim aqui encarar-te e te dizer com pesar que não mais voltarei aqui, que viverei minha vida afastado de tua oresença e apenas com a lembrança de nossos tempos idos na memória.
- Por quê??? Por que abandonas nosso passado lindo e me deixas aqui a passar por esse martírio? Por quê maldito? Por quê?
Suas roupas então perdem o branco e seu rosto alvo literalmente se liquefaz, deixando à mostra traços de mandíbula e no lugar de seus olho amendoados apenas dois buracos negros e opacos. Em pânico, corro em direção à saída, com a sensação de que serei em breve consumido pela maldita costrução que treme sob meus pés.
Ao chegar finalmente à porta de saída, olho para trás e vejo Helena; uma forma grotesca e assuatadoramente puída a me olhar, vazia e sem vida. Porém leio claramente a pergunta em sua expressão: Por quê?
Atônito e sem conseguir expressar palavra, jogo o papel couchè que trazia no bolso para que Helena entenda. Um grito altíssimo de dor e ódio brota daquele ser ao terminar de ler o meu convite de casamento. Percebo que a porta está trancada; tento arrombá-la mas é como se forçasse os portões do próprio Hades. Sinto um gélido toque em meu ombro e me viro desesperado, atravessando aquele ser e me atirando pela janela, porém percebo tarde demais que a casa havia uma vez mais se transformado e eu caía do último andar. Ao me chocar com o chão, antes da dor, ouço apenas um riso e uma voz cadavérica a me dizer: "Bem vindo".